sábado, 21 de novembro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

12. Poema


O vidro da janela separava o meu quarto de um pequeno terraço, no primeiro andar, de onde se avistava o Tejo domesticado, a planície ribatejana, as duas pontes, a rodoviária e a ferroviária, os amontoados de luzes e o luar de Agosto.
Deitei-me na cama e retomei a leitura de Um Embuste Perfeito, de Italo Svevo. Apaguei todas as luzes do quarto (é curiosa a quantidade de luzes que existem num local onde se dorme, onde são menos precisas!), deixando um fiozinho de luz do candeeiro para que o calor não fosse insuportável.
Quando me preparava para registar uma frase do livro, uma voz feminina, muito convicta, defrontava uma voz masculina, convicta. Discutiam se a rua S era a segunda ou a terceira a partir da praça R, em direcção ao rio, de uma cidade-capital. Como nenhum deles conseguia convencer o outro, resolveram telefonar a uma pessoa distante, que não deu a razão a nenhum dos dois. Segundo ela, a rua S não era a segunda nem a terceira, mas a primeira rua que iniciava na praça R, em direcção ao rio. Telefonaram a outras vozes distantes. Todas davam a razão a um dos dois. Nunca a um deles.
O casal não parava o confronto. O tom das vozes aumentava cada vez mais. Quando começavam a ser insuportáveis, o confronto e as vozes, resolvi intervir, interrompendo a leitura na página 48. Rasguei uma folha de um caderno de notas com um poema, que escrevera durante o almoço, num restaurante apinhado de diárias. Corri a cortina verde. Abri a janela. Eles suspenderam a contenda para olharem para mim, que acabava de abrir a janela, que esticava o braço, que lhes oferecia o poema.

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