sábado, 31 de outubro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

9. Silêncio, só silêncio

Subi as escadas de acesso à recepção da pousada da juventude. Sentia as pernas cansadas. Percorrera, alheado do relógio, da noite, da brisa que anunciava a antemanhã, as ruas estreitas, íngremes, desertas, do centro da cidade.
É antigo, talvez tenha a mesma idade que a do meu cartão de cidadão, talvez seja meu irmão gémeo, o meu deslumbramento, a minha dilecção, percorrer, durante a noite, as ruas das cidades, quando as portas estão trancadas, quando o silêncio é só silêncio, quando a solidão esventra, a imaginar histórias cujas personagens dormem do outro lado das paredes com janelas fechadas.
Abri a porta da recepção. Cumprimentei e acordei a recepcionista. Ela retribuiu-me o cumprimento que quebrou o silêncio do corredor de acesso aos quartos. Abri a porta lentamente e entrei, deixando um rasto de silêncio, só silêncio.
Se eu pudesse tricar a terra toda
E sentir-lhe um paladar.
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se,
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

Alberto Caeiro

Post scriptum: Em jeito de agradecimento.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé


8. Vá em frente

Sigo o meu caminho por instinto. Ele levar-me-á a algum destino.Vou andando. Parto, fingindo que não hesito. Este é o meu caminho. Às vezes cruza-se com o teu. E olhamos para dentro de nós, eu para ti, tu para mim, e vimos o que queremos ver, mesmo que não seja grande coisa. Ambos sabemos que o que realmente importa é que o olhar descubra.

Baixou bastante a temperatura com a chegada da noite. Até amanhã, se te encontrar.

Apresentação na E.B. 2,3 Rosa Ramalho, em Barcelinhos - Parte II
















segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Apresentação do Romance na E.B. 2,3 Rosa Ramalho, em Barcelinhos, - Parte I











Baptista Bastos ou o Narrador de "Um Homem Parado no Inverno"

« (…) os portugueses vivem num crisol de inveja, despeito e ódio; absurdos e anacrónicos desencontram-se com a História e a História não esperou por eles; a repressão ideológica, a perseguição à ciência, o obscurantismo cultural, durante séculos e geraram um povo que possui a volúpia do mesquinho na mesquinhez; resignados e infelizes não perdoam, e fecundam uma inferioridade que os incita à indiferença ou ao rancor; é um povo herdeiro do mal, basta ler o João de Barros das Décadas ou os relatos trágico-marítimos; assassina por uma partilha duvidosa de bens ou por um regueiro de água que, no seu entender, foi-lhe abusivamente desviado; emigra e faz um leito de nações, porém é incapaz de promover o seu destino colectivo; não representa: enuncia; não realiza: deseja; a decisão mais judiciosa que deveria tomar era desaparecer, fundir-se na angústia para procurar conhecer-se; tudo lhe é inalcançável, tudo lhe está distante e turvo; de longe em longe experimenta uma sensação de euforia, passageira, porem; logo se dilui na inveja, logo se veste de uma odiosa melancolia (…)»

Baptista Bastos, Um Homem Parado no Inverno

Apresentação na E.S. Alcaides de Faria, em Barcelos






sábado, 24 de outubro de 2009

Etienne Daho - Saudade

En ce mai de fous messages
J'ai un rendez-vous dans l'air
Inattendu et clair
Déjà je pars à ta découverte
Ville bonne et offerte
C'est l'attrait du danger
Qui me mène à ce lieu
C'est d'instinct
Qu'tu me cherches et approches
Je sens que c'est toi

C'est à l'aube que se ferment
Tes prunelles marina
Sous quel meridien se caresser
Dans mes bras te cacher
Dans ces ruelles fantômes
Ou sur cette terrasse
Où s'écrase un soleil
Tu m'enseignes
Le langage des yeux
Je reste sans voix

Les nuits au loin tu cherches l'ombre
Comment ris-tu avec les autres
Parfois aussi je m'abandonne
Mais au matin les dauphins se meurent
De saudade...

Où mène ce tourbillon
Cette valse d'avions
Aller au bout de toi et de moi
Vaincre la peur du vide
Les ruptures d'équilibre
Si tes larmes se mèlent
Aux pluies de novembre
Et que je dois en périr
Je sombrerai avec joie

De saudade...


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

7. Linha da Beira Baixa
Deveria ser obrigatório, uma obrigação moral, todos os portugueses viajarem nesta linha, entre as estações de Entroncamento e Vila Velha de Ródão, pelo menos uma vez na vida.
Mal avistei o rio Tejo, saltei do conforto do meu banco e o ar condicionado da carruagem e corri para a porta de saída, onde poderia desfrutar de um ponto de observação privilegiado sobre o rio amansado e sobre a margem esquerda. Mantive-me em pé, indiferente ao calor, ao barulho, ao entra-e-sai da casa de banho, à minha segurança, deslumbrado, um deslumbramento de criança, a absorver todos os quadros naturais, fugidios. Apeteceu-me tomar, pela força, a cabine do maquinista e obrigá-lo a parar quando me apetecesse, que me deixasse, durante dois ou três minutos, a saborear a paisagem, o Tejo domado, o Tejo selvagem, a fauna assustada, a corrente a entrar-me através do olhar de criança extasiada. Que pena o comboio não ter avariado!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

6. Copo Vazio

Uma aragem fresca refrescara a noite e o meu corpo que saltitara de rua em rua. Parei à entrada do pequeno bar. Espreitei para o interior através da porta de vidro. Entrei porque estava vazio de clientes. Com todas as mesas à minha disposição, fiquei indeciso, sem saber onde sentar-me. A empregada, uma mulher morena, com o cabelo muito comprido e um sorriso atractivo, divertia-se, atrás do balcão, com a minha indecisão. Ao fim de três senta-não-senta, ocupei a mesa mais próxima do balcão.
(Boa noite, Sr. Indeciso! O que deseja tomar?)
(Não sei muito bem o que me apetece, Sra. perspicaz. Preciso de mais algum tempo…)
(O bar encerra às duas horas.)
Sorriu-me e afastou-se. Entrou num pequeno compartimento para pôr um dos “Café d’el Mar”.
Regressou ao balcão. Levantei-me e aproximei-me dela.
(Então, já decidiu, Sr. Indeciso?)
(Já. Apetecia-me um copo de companhia com amizade.)
(Companhia posso servir-lhe… Mas amizade não. A não ser que queira trocar a amizade por compreensão. Olhe, que sabe muito bem, um copo de companhia com compreensão!)
Aceitei. Há muito tempo que aprendi a viver sem tudo.

sábado, 10 de outubro de 2009

Jose Gonzalez - Heartbeats




«Um corpo. Um corpo vertical ou estendido é sempre uma chama: aquece e ilumina. Um corpo respira, abre-se ao sol, floresce na noite. Em silêncio, é pura veemência; quando fala, queixa-se de ser tão frágil e tão só. Mais raramente, diz uma palavra de alegria. Exalta-se; fatiga-se; exaspera-se. A sua voz é a da terra – dali parte, ali regressa. É breve a sua duração, muito breve – quase só o tempo de um suspiro. Mas é belo aquele esplendor. Não há nada mais belo. Da sua existência, deixa às vezes uns sinais. De inquietação; de plenitude. O mais efémero dos seres tem sede de eternidade, quero eu dizer: de outro corpo. Então balbucia, beija, ama, dá um subtil nome às coisas, e das dissonâncias da carne ergue-se à exacta medida do canto, ou de qualquer outra música. A luz torna-se fulguração. Toda a eternidade é isso – e não há outra.»
Eugénio de Andrade, Os Afluentes do Silêncio

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

5. Riacho Interior

Deitei o meu corpo lavado na cama impessoal. Seria a primeira e a última noite que dormiria naquela cama. Nunca me habituei às camas dos outros. Abri um romance que tirei da mochila cada vez mais desarrumada. Retomei a leitura na página assinalada por um pequeno pedaço de papel onde anotava uma ou outra frase que gostaria de ter sido eu a escrevê-la. Tentava matar o tempo e a noite.
Um som constante, apaziguador, embalador, entrava pela janela entreaberta. Fechei o romance. Desliguei a luz do candeeiro e fiquei a decifrar o som que vinha da rua. Era a corrente de um riacho a cair de um declive.
Fechei os olhos. Mas não queria adormecer. A pergunta, que atormentou o final da minha tarde, reapareceu no meu cérebro
(para onde vou).
Acordei com os primeiros raios de sol a entrarem no quarto. Levantei-me da cama para fechar a janela entreaberta. O som do riacho desaparecera. Escancarei as portadas para me debruçar, o mais que pude, no parapeito. Diante dos meus olhos estendia-se um enorme parque de estacionamento.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé


4. Sé da Guarda

Escolhi o banco mais afastado do altar. Sentei-me. Fiquei em silêncio, a escutar as vozes que trazia comigo. Eram vozes privadas. Os outros não as escutavam. Abri a mochila. Retirei um bloco de notas onde, ao início da manhã, enclausurara uma história. Continuei-a, alheado dos grupos de turistas que iam entrando e saindo do templo de granito. Acrescentei-lhe uma ‘cena’ de sexo, de amor sem amor. Nenhum dos santos, que me observavam do alto dos seus altares, condenou a minha ousadia. Pelo menos, foi isso que senti.