segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Ipsis Verbis

«A criança que não brinca não é criança; mas o homem que não brinca perdeu para sempre a criança que nele vivia e que tanta falta lhe faz ao longo de toda a sua existência. Construí também a minha casa como um brinquedo e com ela brinco de manhã à noite.»

Pablo Neruda, Confesso Que Vivi

domingo, 29 de novembro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

13. Amizade


Percorri os caminhos labirínticos do jardim. Havia muitos bancos vazios. Saltitei de banco em banco. Havia sempre um motivozinho para escolher outro banco. Por fim, sentei-me num banco, de frente para a Biblioteca Municipal. Perto de mim, três adolescentes comportavam-se como crianças. Um pouco mais afastados, dois idosos comportavam-se como mortos. Ocupei-me a observar um grupo de pombos que, aos poucos, começaram a aproximar-se de mim. Sussurrei-lhes
(eu não tenho nada para vos oferecer).
Repensei o meu sussurro e emendei-o
(a não ser a minha companhia, a minha amizade, o meu tempo).
Um dos pombos, ou seria uma pomba?, agitou as asas, deu um impulso ao seu frágil corpo e pulou para o meu pé direito, que se encontrava cruzado sobre o esquerdo. E ficámos algum tempo a admirar-nos, a travar amizade, até que a minha mais recente amiga resolveu partir.
[Os amigos partem. Mas a amizade fica.]

sábado, 28 de novembro de 2009

Eis os portugueses

«Mas os portugueses são pequenos mortos carregados de bandos de filhos. Lastimam-se, lamentam-se, queixam-se; só raramente protestam, só raramente se indignam: falam baixo. Raquíticos, supersticiosos, ignorantes, obesos, confundem passado, presente e futuro, embebedam-se, escarram no chão, batem nas mulheres, recriminam-se uns aos outros, investem-se de mitos primitivos, habitam espaços reduzidos em bairros infectos, elevam o som das rádios para lá de limites suportáveis, discutem futebol toda a semana, crêem na má-sorte, acreditam no milagre de Fátima, amontoam-se, tornam-se patéticos com a modéstia abjecta dos seus desejos; voltam a embebedar-se. Ei-los maltratados, agredidos, feridos, arranhados: e resignam-se à ilusória ficção de que, quando contam as suas desgraças, são escutados com reverente compreensão e simpatia. E fazem-no sem pudor. Satisfazem-se demonstrando as suas misérias: até publicamente. Nas bichas dos carros eléctricos, no interior dos autocarros apinhados, no confuso tumulto das carruagens do Metro, odores de suor, de corpos mal lavados, detritos, imundícies, fétidos rostos de cadáveres, zangas sem significado, intrigas, vaidades, anedotas, piadas grosseiras, astúcias menores, manhas grotescas. Aos domingos passeiam aos magotes pelos centros comerciais.»
Baptista Bastos, Um Homem Parado no Inverno

domingo, 22 de novembro de 2009

Santa Maria de Bouro


Regresso para te ouvir.
Sento-me lentamente
até sentir o tronco delicado
de uma bétula a afagar-me as costas
cansadas pela vida.
Regresso para te abraçar
com os abraços que já tive.
Regresso para deixar um pouco
mais de mim.

sábado, 21 de novembro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

12. Poema


O vidro da janela separava o meu quarto de um pequeno terraço, no primeiro andar, de onde se avistava o Tejo domesticado, a planície ribatejana, as duas pontes, a rodoviária e a ferroviária, os amontoados de luzes e o luar de Agosto.
Deitei-me na cama e retomei a leitura de Um Embuste Perfeito, de Italo Svevo. Apaguei todas as luzes do quarto (é curiosa a quantidade de luzes que existem num local onde se dorme, onde são menos precisas!), deixando um fiozinho de luz do candeeiro para que o calor não fosse insuportável.
Quando me preparava para registar uma frase do livro, uma voz feminina, muito convicta, defrontava uma voz masculina, convicta. Discutiam se a rua S era a segunda ou a terceira a partir da praça R, em direcção ao rio, de uma cidade-capital. Como nenhum deles conseguia convencer o outro, resolveram telefonar a uma pessoa distante, que não deu a razão a nenhum dos dois. Segundo ela, a rua S não era a segunda nem a terceira, mas a primeira rua que iniciava na praça R, em direcção ao rio. Telefonaram a outras vozes distantes. Todas davam a razão a um dos dois. Nunca a um deles.
O casal não parava o confronto. O tom das vozes aumentava cada vez mais. Quando começavam a ser insuportáveis, o confronto e as vozes, resolvi intervir, interrompendo a leitura na página 48. Rasguei uma folha de um caderno de notas com um poema, que escrevera durante o almoço, num restaurante apinhado de diárias. Corri a cortina verde. Abri a janela. Eles suspenderam a contenda para olharem para mim, que acabava de abrir a janela, que esticava o braço, que lhes oferecia o poema.

domingo, 15 de novembro de 2009

Em memória do Lucas

Regressaste ao pó sem nos despedirmos.
Estávamos tão ocupados a gostar um do outro
que não equacionámos a hipótese de um de nós partir sem se despedir.
Ontem, tu partiste, cedo, demasiado cedo,
como partem todos aqueles que são amados.
Afinal todas as vezes
que te aproximavas para eu te beijar,
que te encostavas ao meu corpo para te acariciar,
que ficavas sentado à espera, para me ofereceres a tua companhia, a tua protecção,
que ficavas em silêncio a compreender-me,
afinal dizíamo-nos adeus.
Se houvesse dignidade na morte, tu merecê-la-ias.
(Ninguém merece morrer atropelado,
atirado para o escuro de uma mina.
Do ser humano, já nada me surpreende.)
Uma morte digna continua a ser morte.
Morte é morte,
ponto final parágrafo.
Deixámo-nos.
Tu já não tens memória.
Essa ficou toda para mim.
O que hei-de fazer com todos os pedacinhos da tua alma
que eu guardo nas profundezas?
O que hei-de fazer quando chamar
Lucas, Lucas
e tu não apareceres?

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

11. Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes

Ir a Abrantes e não visitar, gratuitamente, o Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, instalado no convento de S. Domingos, uma edificação do início do século XVI, onde se encontra sepultado, entre outras figuras da nossa História, o Infante D. Fernando, filho de D. Manuel, é como ir a Roma e não ver o Papa.

A manhã ia a meio quando comecei a visita. O meu corpo absorveu imediatamente a frescura proporcionada pelas grossas paredes do pequeno templo. Dei quatro passos e parei sem querer. Os meus sentidos encontravam-se, inexplicavelmente, anestesiados. Percorri, indiferente a tudo, as várias colecções, peça a peça, devagar, tão devagar que esqueci o almoço. O meu estômago solidarizara-se com a minha curiosidade desmedida, a minha necessidade de não ser como era. Recuei no tempo. Entrei no Neolítico e no Calcolítico, nas Idades do Bronze e do Ferro, no Antigo Egipto, na Grécia Antiga (a actual continua a arder), no Mundo Romano, na Arte Chinesa, no Paleo-Cristão, Islão e Idade Média Cristã, no final da Idade Média, no Renascimento, no Barroco. Subi as estreitas e sinuosas escadas de acesso ao coro onde havia trabalhos de dois artistas contemporâneos: Maria Lucília Moita (“Os carvalhos rasgados não são coisas mortas/Ficaram no caminho do vento”) e as “Cidades imaginárias” de João Charters de Almeida. Quanto tempo fiquei diante da tela “Os olhos de ânsia”?Ir a Abrantes e não visitar, gratuitamente, gratuitamente, gratuitamente, o Museu Ibérico de Arqueologia e Arte é como ir a Roma e não ver o Papa. Eu já fui ao Vaticano e não vi o Papa.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ipsis Verbis


«Os felizes e os infelizes vivem no mesmo mundo e não o vêem!»


«O medo de enlouquecer é no fim de contas o medo de nos transformarmos noutra pessoa:

mas isso é o que está constantemente a acontecer-nos.»


«Eu, eu, eu, eu... ao fim de apenas quatro repetições, uma palavra sem sentido.»


Lars Gustafsson, A Morte de Um Apicultor

domingo, 8 de novembro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé











10. Castelo de Abrantes

Apetece demorar, ficar, esquecer o tempo dos relógios, os dias cheios de nada, esquecer-se, perder-se, reencontrar-se.
Do terraço da torre de menagem, com o Tejo ao fundo do olhar, a serpentear os montes, a descer o vale que ele próprio escavou, a correr lentamente para os braços do seu deus; com o casario da cidade antiga, as suas ruas estreitas a desembocarem noutras ruas estreitas onde os carros, intrusos do tempo, não poluíam, ou em pequenas e desniveladas praças onde corpos pachorrentos matavam a sede e a solidão de Agosto.
Desci da torre de menagem. Percorri todo o perímetro amuralhado, indiferente ao calor da tarde. Sentei-me à sombra de um carvalho, encostado ao tronco rugoso. Demorei, fiquei, esqueci-me do tempo dos relógios, esqueci-me de mim, perdi-me, sonhei, imaginei-me. Quando estava prestes a reencontrar-me, uma voz
(lamento incomodá-lo, senhor, mas está na hora de encerrar o castelo).