sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

18. Bom dia!

Há vários meses que percorro a mesma estrada municipal. Já decorei os buracos no macadame, todas as tampas de saneamento e as curvas desniveladas. Habituei-me a ultrapassar os mesmos autocarros que transportam alunos para as escolas como se fossem barcaças a atravessar o estreito Mediterrâneo a abarrotar de esfomeados. Reconheço os carros e os condutores que, tal como eu, passam nos mesmos lugares à mesma hora.
[O ser humano é incorrigivelmente rotineiro.]
Nos três últimos quilómetros encontrava todas as manhãs, na mesma recta, o mesmo carro metalizado, o mesmo rosto de mulher atenta à estrada. Um dia frio de sol, inexplicável e instintivamente, acenei-lhe ao cruzar-me com o carro dela. No dia seguinte, frio de chuva, ela acenou-me. A partir desse dia, acenámo-nos.
Na semana passada, atrasei-me cerca de meia hora. Quando me aproximei da recta, apercebi-me de que não teria ninguém a quem acenar. Entrei na recta com uma profunda e estranha inquietação. Ao aproximar-me do final da recta, deparei-me com um corpo sinalizado a ordenar-me que abrandasse. Obedeci imediatamente. Tratava-se de um polícia. Pediu-me, com gestos, que circulasse devagar, com prudência e que o fizesse pela faixa de rodagem contrária àquela em que o meu carro circulava. Conclui que haveria algum obstáculo na curva que estava prestes a curvar. Confirmou-se a minha dedução. Estava um carro acidentado, provavelmente sem conserto. Olhei para a traseira do carro. Era metalizado. Reconheci imediatamente a matrícula. Era o carro dela. Encostei o meu carro. Corri para o local do acidente. Mas não a encontrei. Nesse instante, uma ambulância ligou a sirene e arrancou aflita.
Há uma semana que passo na mesma recta, no final da qual existe uma curva desnivelada com um muro derrubado por um carro de uma condutora a quem eu gostaria tanto de voltar a acenar.

1 comentário:

  1. Obrigado, Carla, pela música 'acalmadora'.
    Belo poema, magníficas fotografias, voz quente.

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