segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

14.A meio da ponte
O sol ainda era uma criança quando comecei a descer, com passadas largas, a encosta até à ponte, que me permitiria atravessar para a margem esquerda do Tejo onde ficava a estação. Carros apressados cruzavam-se com a minha calma. A frescura da manhã refrescava-me a face.
Entrei na ponte com um passeio estreito dos dois lados. Carros ainda mais apressados ultrapassavam outros carros, desrespeitando a sinalização e as vidas. Sentia o tabuleiro da ponte a tremer debaixo dos meus pés. Evitava olhar para o rio sem corrente, turbo. Sentia-me tremendamente instável. Encorajava-me e ia avançando lentamente, a passo de caracol. O abismo atraía-me, como se tivesse um íman invisível, como se do fundo do rio ouvisse uma voz, um chamamento irresistível. Olhava em frente para o casario de Rossio-ao-Sul-do-Tejo. A meio da ponte, parei e encostei-me ao gradeamento de protecção e fiquei a olhar para o rio, como uma presa olha para a cobra antes de ser ingerida. A água encontrava-se extremamente turba. Não se avistava o fundo. A duzentos metros dali, um areeiro preparava-se para começar a varrer as migalhas do rio. Sentia-me cada vez mais atraído pelo abismo. Dentro de mim, algo começava a ceder, a deixar-se ir indo. Encostei-me à grade de protecção. Tremi ao sentir o metal frio a encostar-se ao meu corpo. Parecia que não tinha vontade, que alguém decidia por mim. A superfície da água ia subindo, subindo, ao meu encontro, quando uma mão quente tocou no meu braço. Era uma mão de mulher. Era um cheiro de mulher. E uma voz perto do meu ouvido esquerdo
(o caminho não é por aí).

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