sábado, 27 de março de 2010

Instantes de Um Peregrino Sem Fé



21. Para Sul (Continuação)

A estrada estendia-se pela planície, paralela ao mar. O condutor conduzia devagar. O dia começava a aquecer velozmente. Os vidros da frente iam abertos. O vento refrescava-me o cérebro em pousio. O carro era mais velho do que eu pensava. Mas o rádio era mais moderno do que eu pensava e comia discos compactados e tocava as mesmas músicas.
Não tinha nada para lhes dizer. Há vários dias que não dizia nada a ninguém. Ou seriam anos? Ou serão anos? Por isso, mantive-me em silêncio, a olhar, ora para a paisagem que ia ficando para trás, ora para as nucas de dois estranhos. O rapaz, o condutor, tinha o cabelo rapado. A rapariga tinha o cabelo alourado, pelos ombros. Ambos cantavam as músicas. Conheciam as letras das canções.
Fechei os olhos no preciso instante em que se preparavam para ouvir pela terceira vez o mesmo disco compactado. Encostei a cabeça ao banco a cheirar a passado. Tentava em vão não pensar em nada. O carro parou. Abri os olhos. O condutor saiu para abastecer o carro com gasolina. A rapariga também saiu e dirigiu-se para o interior da loja. Tinha um corpo jovem. Deveria ter aproximadamente dezoito anos. Ela regressou ao carro antes do rapaz. Sentou-se e virou-se para o banco de trás, onde eu estava sentado, sem me poder mexer, com a minha mochila em cima das pernas, o único espaço disponível para a levar. E ficou a olhar-me com os seus olhos azuis, em silêncio. E eu fiquei a olhá-la, em silêncio, como se tivesse regressado ao tempo em que jogava ao sério. O condutor entrou no carro. Arrancámos novamente em direcção ao sul. Ela retirou o olhar de mim. Pôs o cinto e ligou o rádio para ouvirem as mesmas músicas.

         A continuar...

sábado, 20 de março de 2010

Sonho da mãe negra

Mãe negra
Embala o seu filho
E a sua cabeça negra
Coberta de cabelos negros
Ela guarda sonhos maravilhosos



Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Que o milho já a terra secou
Que o amendoim ontem acabou


Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho iria à escola
À escola onde estudam os homens


Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Os seus irmãos construindo vilas e cidades
Cimentando-as com o seu sangue


Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho correria na estrada
Na estrada onde passam os homens


Mãe negra
Embala o seu filho
E escutando
A voz que vem de longe
Trazida pelos ventos


Ela sonha mundos maravilhosos
Mundos maravilhosos
Onde o seu filho poderá viver…

              Marcelino dos Santos

terça-feira, 9 de março de 2010

Instantes de Um Peregrino Sem Fé

20. Para Sul (continuação)



           Levantei a mochila do chão e andei meia dúzia de metros pela berma da estreita estrada que rumava ao Sul. Parei de frente para os carros. Aproximou-se um carro muito velho com um casal muito novo. A matrícula era estrangeira. Os ocupantes tinham olhar de estrangeiros. O carro parou no preciso instante em que eu me preparava para pedir-lhe boleia. A mulher do casal desprendeu o cinto de segurança, debruçou-se para o banco de trás e afastou uma amálgama de objectos que ocupavam todo o banco, amontoando-os num dos lados do banco. Abriu-me a porta por dentro e eu entrei. O carro arrancou.
    O condutor deveria ter cerca de vinte anos de idade. A cabeça dele, vista de perfil, fazia lembrar-me uma ave de rapina. Tinha uma voz encorpada. Com ela perguntou-me, em inglês
   (para onde queres ir?).
   (Para onde me levarem.)
   A rapariga aumentou o volume do rádio e prosseguimos viagem.

        Continua...

domingo, 7 de março de 2010


"(...) Um lagarto-de-água adormeceu à sombra de uma urze. A corrente do rio Homem calou-se, desaparecendo rapidamente até secar por completo. Liátana sentiu no seu interior uma espécie de chamamento, uma vontade sobre-humana para mudar de margem ( ...)"


"(...)Em ambos nasciam palavras mudas, sem rosto, interiores. Uma brisa aromática transportava esses silêncios de um corpo para o outro. A tarde caiu (...)."

quarta-feira, 3 de março de 2010

Instantes de um Peregrino sem Fé

 


19. Para Sul

Porto Covo.
Entrei numa lojinha atulhada de tudo-e-mais-alguma-coisa. Comprei uma camisola em dois minutos. Sentei-me num banco e despi a camisola que trazia vestida, indiferente aos veraneantes que, aos magotes, romariavam para a praia. Estendi a camisola que acabara de comprar e vestia-a. Procurei um caixote do lixo. Encontrei-o em pouco tempo. Há tantos caixotes do lixo nas nossas vilas e cidades. E ainda há lixo no chão!
Pendurei numa pequena árvore vizinha do caixote do lixo a camisola que despira. Tinha de livrar-me dela, como quem se livra de um velho num depósito de velhos, pois estava suja e já não cabia na mochila. A minha consciência ficaria mais leve com a ilusão de que alguém a levasse para casa, a lavasse e a voltasse a vestir.
Encaixei a mochila nas costas e fui saindo de Porto Covo da mesma forma que, no dia anterior, fora entrando: a pé. Andei. Andei. Fui indo. Os carros passavam por mim, olhavam para mim, mas não abrandavam. Apesar de serem dez da manhã, já estava muito calor (detesto a expressão ‘fazer calor’). O mar prendera a brisa.
Deparei-me com um cruzamento. Li os nomes das localidades escritas na placa que apontava para Sul. Parei durante alguns minutos, com a mochila pousada no chão, encostada às minhas pernas. Fechei os olhos. Os carros passavam pelo meu corpo suado, deixando para trás um rasto de incómodo. Abri os olhos com uma decisão tomada. Apressei-me a comunicá-la a mim mesmo e em primeira-mão
    (vou para Sul).

Continua...